quarta-feira, 27 de abril de 2011

Para uma crítica radical do sadomasoquismo

Quando se criticam as práticas sexuais sadomasoquistas é frequente ouvir-se dizer que desde que o desejo sexual seja satisfeito e desde que não haja nem coerção física nem engano, isto é, desde que se trate de gente de maior idade que sabe o que faz e que quer o que faz, não há nada de errado com estas práticas pois o que importa é o prazer e a satisfação do desejo. Mas, como diz Sandra Lee Bartky, esta é apenas uma resposta liberal a uma crítica radical da sexualidade e consequentemente não responde a essa crítica.
É uma resposta liberal porque assenta no conceito de liberdade individual e se preocupa acima de tudo com a garantia dessa liberdade, esquecendo completamente as implicações mais profundas daquilo que está em causa. E o que aqui está em causa tem a ver com o fato de a sexualidade, particularmente a sexualidade feminina, ser um construto social, no qual a manipulação do desejo desempenha um papel de primeiro plano. Quer dizer, os nossos desejos são nossos, mas é preciso perceber como viemos a tê-los, que função desempenham, porque é que, se são nossos, tantas vezes convivemos tão mal com eles.
Embora o instinto sexual seja inato, os nossos desejos sexuais não o são, as formas que assumem dependem da forma como aprendemos a viver a sexualidade, como aprendemos a satisfazer o instinto; pode aqui estabelecer-se uma analogia com a fome e o ato de comer: a fome é instintiva, mas o modo como a satisfazemos é cultural.
Vivemos em sociedades onde há uma nítida supremacia masculina e sabemos que essa supremacia é claramente mantida através de uma série de mecanismos e de instituições sociais moldadas com esse objectivo; mas mesmo pessoas esclarecidas não percebem que essa manutenção também é conseguida, embora de forma mais velada, discreta e indireta, através da manipulação do sexo e do desejo sexual. Para levar as pessoas a terem determinados desejos e não outros, não é preciso recorrer nem à força física, nem enganá-las diretamente nem violar qualquer direito legalmente estabelecido, basta usar estratégias manipuladoras e não é preciso fazer grande esforço para perceber como a manipulação atua através de filmes a que assistimos, romances que lemos, filosofias que absorvemos, programas televisivos de natureza vária, publicidade, pornografia etc. etc. O conjunto de possibilidades que moldam a nossa «educação» sexual, sob a aparência de variado, liberal e optativo, é de fato muito limitado e deixa uma pequeníssima margem de manobra. Quer dizer que somos formatad@s sem sequer nos apercebermos do que nos está a acontecer. De resto passa-se o mesmo com a informação em geral que, muito argutamente, soube vestir-se com a capa da pluralidade para afinal veicular uma mensagem única, aquela que interessa ao sistema que é aquela que convém aos donos da informação.
Masculinidade dominadora e feminilidade submissa são assim os frutos do sistema que, temendo deserções, não se esquece de constantemente reforçar os papeis e manipular os desejos e desse modo “A mulher verdadeiramente feminina não só terá desejos sexuais por homens como irá desejar formar-se ela própria tanto fisicamente como em outros aspectos numa mulher que os homens desejem.”

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Sexo anal – uma prática pouco recomendável

Eu sei que Maggie Gallagher não é uma feminista e defende posições das quais definitivamente discordo, mas também sei que concordo com ela quando se refere ao sexo anal e, portanto, apesar das desconfianças, apresento a seguir a tradução de um texto seu em que reflete e opina sobre esta matéria. Reflexões deste tipo fazem sentido quando sabemos que cada vez mais somos enquadradas por uma cultura pornográfica que é o mais retumbante instrumento que nos nossos dias se encontra ao serviço do sexismo; e a pornografia é um instrumento particularmente perigoso porque camuflado de libertário.
As televisões main stream, que não estão nem um nadinha interessadas na emancipação das mulheres, bem pelo contrário, também nos oferecem curiosos programas sobre sexo, como vi recentemente na Globo em Amor e Sexo; o objectivo só pode ser o de enganar as papalvas ou parolas, ou paroquiais ou como queiram chamar-lhes. Num dos últimos programas a que assisti, alturas tantas, abordava-se o sexo anal e a apresentadora teve o desplante de afirmar que algumas mulheres têm preconceito contra a prática, como se esta, «tão moderna», fosse a coisa mais natural do mundo e apenas essas mulheres, mais atrasadas, precisassem de fazer uma revisão e um upgrade dos seus comportamentos sexuais. Um dos participantes, curiosamente um homem, ainda chamou a atenção para o fato de poder ser uma prática que não agrada a todas as mulheres, mas ficou-se nisso e não se adiantou mais.
Posto isto, aqui vem o texto e quem não concordar é favor apontar razões porque quando se apresentam argumentos credíveis e consistentes, falar em preconceito é um autêntico insulto à inteligência das pessoas:
“O sexo anal é uma resposta específica da nossa cultura saturada de pornografia, na qual os jovens vêem cada vez mais imagens de sexo anal com mulheres e pedem às suas namoradas para aceitarem essa prática sexual. As mulheres têm hoje menos poder sexual do que tinha a geração anterior. No que toca aos nossos costumes sexuais, os homens determinam a regra do jogo.
O sexo anal é doloroso, não é higiénico, é insatisfatório para as mulheres e cria riscos únicos de doenças físicas (se duvida, leia a entrada para este tópico na Wikipedia) porque o ânus não é apropriado para a relação sexual, aumentando o risco de feridas e a mistura de fluidos corporais – sangue, sémen, matéria fecal – que podem disseminar uma extraordinária variedade de doenças. Com esta prática o risco para a mulher é muito maior do que para o homem. Este devia ser um tópico a preocupar as feministas.”

Também acho, este devia ser um tópico a preocupar as feministas, afinal se já têm a fama de desmancha-prazeres ao menos deviam ter também o proveito.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Porque é que o desejo sexual feminino é sadomasoquista?

O sadomasoquismo abrange todas as práticas sexuais que implicam a erotização da relação domínio/submissão e é um modelo sexual constantemente reforçado nos romances, filmes, novelas e, como não podia deixar de ser, na pornografia; nestas diferentes manifestações culturais, o sex appeal dos homens reside na sua aparente rudeza e mesmo brutalidade, apresentadas como características viris, a feminilidade das mulheres reside na submissividade.
Muitas mulheres e mesmo muitos homens, que defendem a igualdade entre os sexos, percebem o sadomasoquismo como politicamente incorrecto, como a «expressão inevitável de uma cultura de ódio às mulheres.» De fato como é que, por exemplo, uma mulher que reivindica a igualdade entre os sexos pode aceitar que tem prazer em ser dominada sexualmente por um homem? Como é que pode reconhecer que tira prazer daquilo que quer abolir enquanto ativista política? Se as fantasias sexuais envolvem humilhação, degradação, violação e «bondage»; não surpreende que as mulheres tenham vergonha das suas fantasias sexuais, porque estas rebaixam a sua auto-imagem, mostram-nas como pessoas de menor valor, levam-nas a viver a sexualidade como uma realidade humilhante.
O fato da sexualidade hetero ser sadomasoquista tem inequívocas vantagens para a ordem patriarcal, pois reforça o domínio masculino e a submissão feminina Para a ordem patriarcal, a sexualidade sadomasoquista permite enraizar a dominância masculina e a subordinação feminina no instinto sexual e nos desejos sexuais mais profundos: afinal se as mulheres gostam de ser sexualmente dominadas, então é correto que elas também sejam socialmente dominadas. A prática sadomasoquista só é criticada quando envolve exageros, porque então «os sadomasoquistas revelam, embora de uma forma exagerada, a natureza intrínseca da heterossexualidade e só são estigmatizados porque rasgam o véu atrás do qual a respeitabilidade patriarcal gosta de se esconder. (p.56)
Ao aceitarem e interiorizarem este modelo de sexualidade, as mulheres tornam-se coniventes com a dominação e patuam com as estruturas opressivas que a suportam. Atribuir o estatuto de instinto e de inato a esses desejos sexuais equivale a naturalizar os comportamentos de domínio nos homens e de submissão nas mulheres. Por isso Sandra Lee Bartky diz com toda a propriedade que «a estrutura do desejo heterossexual amarra a mulher ao seu opressor». (p.48)
Portanto temos que as relações heterossexuais comportam uma natureza sadomasoquista e temos que a grande maioria das mulheres é heterossexual estando, assim, sexualmente condicionadas para serem submissas e para terem desejos sexuais alimentados por fantasias masoquistas. Se uma mulher heterossexual for concomitantemente uma feminista empenhada em garantir um estatuto de igualdade para o seu sexo, vai sentir-se muito pouco à vontade com a sua própria sexualidade.
O padrão do desejo heterossexual é interiorizado pelas jovens através de um lento e longo processo de impregnação cultural. Quando adolescentes e adultas, vão experienciar uma sexualidade que incorpora esse desejo que foi social e culturalmente construído. Poderão revoltar-se, poderão fazer alguma coisa para mudar o desejo, reprogramar-se e mudar as suas próprias fantasias sexuais ou estas impõem-se inelutavelmente?
Algumas feministas voluntaristas consideram que assim como a sexualidade é socialmente programada também pode ser individualmente reprogramada; se a mulher tiver uma vontade firme e estiver determinada, conseguirá alterar o padrão dos seus desejos, procedendo a uma autêntica descolonização da sua sexualidade. Mas há de imediato uma suspeição quanto à eficácia deste processo: como é que uma mulher sozinha e isolada é capaz de desfazer o que a cultura e a sociedade levaram anos a construir, como é que alguém que interiorizou por processos de impregnação cultural, de que nem sequer teve consciência, um padrão de desejo sexual sadomasoquista é capaz de alterar esse padrão? Não quero dizer que não haja alguns casos de sucesso, mas, para a enorme maioria das pessoas, isto pode não resultar e censurá-las por não terem força de vontade para o fazer é mais uma vez culpabilizar a vítima, partir do princípio de que a vítima é responsável pela sua vitimização. Sandra Lee Bartky critica abertamente a postura das feministas voluntaristas:

«Na minha opinião, a prevalência em alguns círculos feministas daquilo a que chamo ‘voluntarismo sexual’ com as suas fórmulas simplistas, moralismo, intolerância e recusa em reconhecer a dimensão obsessiva do desejo sexual, é ele próprio um obstáculo à emergência de uma prática adequada.» (p.57)

Eu reconheço a justeza destas observações, mas não posso deixar de lembrar que não se vislumbra nenhuma «prática adequada» que nos permita lidar com o problema: lidar com desejos sexuais que experimentamos como humilhantes e degradantes e dos quais consequentemente sentimos vergonha perante nós próprias. Neste contexto, só se nos apresentam duas alternativas, aceitar esses desejos, tentando o auto-convencimento de que afinal eles não são humilhantes, ou tentar mudá-los. Pessoalmente prefiro optar decididamente pela segunda alternativa por mais difícil que ela possa ser. Em primeiro lugar, como estratégia, defendo o acordar das consciências para este problema, procurando explicar porque é que o desejo sexual feminino assume a forma padrão que assume. Em seguida, cada mulher que conseguiu sair da ‘caverna’, isto é, da ignorância, para utilizarmos a metáfora platónica, e compreendeu os seus desejos, pode, verdadeiramente, optar por mantê-los ou por modificá-los. Neste segundo caso, com o auxílio da imaginação pode tentar construir uma sexualidade autónoma, não colonizada, da qual não se envergonhe.

Citações de Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination.
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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Sexualidade feminina – ficção ou realidade?!

Sabemos bem que as sociedades, de uma maneira geral, sempre procuraram limitar as experiências sexuais das mulheres, o que está flagrantemente comprovado pela exigência de abstinência sexual até ao casamento e pelo requisito de absoluta fidelidade no casamento. Estas práticas, mesmo no Ocidente, ainda hoje predominam e impõem-se de maneira tão rígida em outras regiões que determinam a condenação à morte, ou no mínimo a marginalização, da mulher, solteira ou casada, que as infringe. Estas práticas, embora impostas pelos homens e em benefício dos homens, foram assumidas pelas mulheres por processos de impregnação cultural.
A limitação da experiência sexual das mulheres é obviamente impeditiva da construção da sua própria sexualidade, pois se uma mulher se limita a ter relações sexuais com um único companheiro para o qual se «guardou», o que ela vai saber do sexo vai ser aquilo que o companheiro lhe transmite, o que temos de convir pode ser bastante redutor e até induzir em erro acerca dela própria e das suas potencialidades; por outro lado, impedida por constrangimentos educacionais de vocalizar uma experiência sexual já de si escassa, não vai ter oportunidade de se compreender, crescer, nem de se desenvolver e adquirir autonomia sexual. Mas há mais; como durante milhares de anos as mulheres foram impedidas de se exprimir livremente a todos os títulos e muito particularmente ao nível da vida sexual,  foram também privadas de termos próprios para se referirem à sua sexualidade ou para exprimirem os seus desejos, só lhes restando a opção de utilizarem os termos que os homens criaram para referir essa experiência, com implicações óbvias: são ‘obrigadas’ a verem-se a elas próprias através dos olhos dos homens. Um exemplo flagrante permite perceber o que está em causa: nas referências linguísticas ao ato sexual, constata-se que o vocabulário usado - as expressões utilizadas - aponta para homens ativos e mulheres passivas, homens que agem e mulheres que sofrem a ação dos homens, o que implica conceber o sexo como uma relação de domínio/ submissão, enfatizando a agressividade masculina e a passividade feminina; por isso é que a expressão que refere a passividade feminina no ato sexual, quando usada em contextos do quotidiano, equivale a um insulto e por isso é que a maior parte das expressões insultuosas se encontram ligadas ao sexo, como se este fosse poder, algo que só é bom para quem o exerce e mau para as mulheres que o suportam e que desejaríamos que os nossos inimigos também suportassem.
A partir da limitação da experiência sexual, por um lado, e da privação de linguagem própria, por outro, consegue-se que as mulheres se construam como objectos a serem manipulados pelos homens e moldem os seus desejos - que naturalmente não conseguem suprimir - nesses termos; assim, em boa verdade, se quisermos seguir uma linha coerente de pensamento, temos de concluir que a sexualidade feminina, enquanto feminina, é uma verdadeira ficção, porque foi imposta e moldada pela sexualidade masculina.
A sexualidade é a maneira como o sexo é vivido, e as mulheres, mercê destes pesados condicionalismos, vivem a sexualidade como submissão ao macho; os seus desejos, as suas fantasias, revestem formas decorrentes deste enquadramento no qual, para abreviarmos, é o desejo sexual do macho que define o masculino e perversamente, também o feminino.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Sexualidade feminina – da ficção à realidade
Tanto a sexualidade feminina quanto a masculina são socialmente construídas; do modo como são construídas, decorre, por um lado, a objetificação das mulheres e, por outro, a conexão entre sexo e violência, porque, como os homens sempre se encontraram em situação de poder eles ‘puderam’ definir a sexualidade e considerar que a dominância é equivalente de masculinidade e a submissão de feminilidade. Nesse contexto, as mulheres adquirem o estatuto de objectos a serem dominados e controlados pelos homens e, se são objetos, então a violência que sobre elas se exerce deixa de ser entendida como violência e está legitimada. Entender a sexualidade em termos de domínio/submissão garante, obviamente, o poder masculino.
 A pornografia também dá uma ajuda, contribuindo de forma decisiva para reforçar estes papéis sexuais, com a agravante de revelar como as mulheres se sentem deliciadas por se enquadrarem neles, pois mostra-as a aderirem a todas as espécies de violência e de abuso, sem resistirem e sentindo-se mesmo agradadas, apesar da humilhação e degradação que têm de suportar. Tudo isto é erotizado: é mostrado como sexy e como prazeroso para as mulheres. Ao assistirem à pornografia os homens ‘aprendem’ que é aquilo de que as mulheres gostam e é aquilo que merecem e os desejos das mulheres também são manipulados para que respondam ao que delas se espera.