O sadomasoquismo abrange todas as práticas sexuais que implicam a erotização da relação domínio/submissão e é um modelo sexual constantemente reforçado nos romances, filmes, novelas e, como não podia deixar de ser, na pornografia; nestas diferentes manifestações culturais, o sex appeal dos homens reside na sua aparente rudeza e mesmo brutalidade, apresentadas como características viris, a feminilidade das mulheres reside na submissividade.
Muitas mulheres e mesmo muitos homens, que defendem a igualdade entre os sexos, percebem o sadomasoquismo como politicamente incorrecto, como a «expressão inevitável de uma cultura de ódio às mulheres.» De fato como é que, por exemplo, uma mulher que reivindica a igualdade entre os sexos pode aceitar que tem prazer em ser dominada sexualmente por um homem? Como é que pode reconhecer que tira prazer daquilo que quer abolir enquanto ativista política? Se as fantasias sexuais envolvem humilhação, degradação, violação e «bondage»; não surpreende que as mulheres tenham vergonha das suas fantasias sexuais, porque estas rebaixam a sua auto-imagem, mostram-nas como pessoas de menor valor, levam-nas a viver a sexualidade como uma realidade humilhante.
O fato da sexualidade hetero ser sadomasoquista tem inequívocas vantagens para a ordem patriarcal, pois reforça o domínio masculino e a submissão feminina Para a ordem patriarcal, a sexualidade sadomasoquista permite enraizar a dominância masculina e a subordinação feminina no instinto sexual e nos desejos sexuais mais profundos: afinal se as mulheres gostam de ser sexualmente dominadas, então é correto que elas também sejam socialmente dominadas. A prática sadomasoquista só é criticada quando envolve exageros, porque então «os sadomasoquistas revelam, embora de uma forma exagerada, a natureza intrínseca da heterossexualidade e só são estigmatizados porque rasgam o véu atrás do qual a respeitabilidade patriarcal gosta de se esconder. (p.56)
Ao aceitarem e interiorizarem este modelo de sexualidade, as mulheres tornam-se coniventes com a dominação e patuam com as estruturas opressivas que a suportam. Atribuir o estatuto de instinto e de inato a esses desejos sexuais equivale a naturalizar os comportamentos de domínio nos homens e de submissão nas mulheres. Por isso Sandra Lee Bartky diz com toda a propriedade que «a estrutura do desejo heterossexual amarra a mulher ao seu opressor». (p.48)
Portanto temos que as relações heterossexuais comportam uma natureza sadomasoquista e temos que a grande maioria das mulheres é heterossexual estando, assim, sexualmente condicionadas para serem submissas e para terem desejos sexuais alimentados por fantasias masoquistas. Se uma mulher heterossexual for concomitantemente uma feminista empenhada em garantir um estatuto de igualdade para o seu sexo, vai sentir-se muito pouco à vontade com a sua própria sexualidade.
O padrão do desejo heterossexual é interiorizado pelas jovens através de um lento e longo processo de impregnação cultural. Quando adolescentes e adultas, vão experienciar uma sexualidade que incorpora esse desejo que foi social e culturalmente construído. Poderão revoltar-se, poderão fazer alguma coisa para mudar o desejo, reprogramar-se e mudar as suas próprias fantasias sexuais ou estas impõem-se inelutavelmente?
Algumas feministas voluntaristas consideram que assim como a sexualidade é socialmente programada também pode ser individualmente reprogramada; se a mulher tiver uma vontade firme e estiver determinada, conseguirá alterar o padrão dos seus desejos, procedendo a uma autêntica descolonização da sua sexualidade. Mas há de imediato uma suspeição quanto à eficácia deste processo: como é que uma mulher sozinha e isolada é capaz de desfazer o que a cultura e a sociedade levaram anos a construir, como é que alguém que interiorizou por processos de impregnação cultural, de que nem sequer teve consciência, um padrão de desejo sexual sadomasoquista é capaz de alterar esse padrão? Não quero dizer que não haja alguns casos de sucesso, mas, para a enorme maioria das pessoas, isto pode não resultar e censurá-las por não terem força de vontade para o fazer é mais uma vez culpabilizar a vítima, partir do princípio de que a vítima é responsável pela sua vitimização. Sandra Lee Bartky critica abertamente a postura das feministas voluntaristas:
«Na minha opinião, a prevalência em alguns círculos feministas daquilo a que chamo ‘voluntarismo sexual’ com as suas fórmulas simplistas, moralismo, intolerância e recusa em reconhecer a dimensão obsessiva do desejo sexual, é ele próprio um obstáculo à emergência de uma prática adequada.» (p.57)
Eu reconheço a justeza destas observações, mas não posso deixar de lembrar que não se vislumbra nenhuma «prática adequada» que nos permita lidar com o problema: lidar com desejos sexuais que experimentamos como humilhantes e degradantes e dos quais consequentemente sentimos vergonha perante nós próprias. Neste contexto, só se nos apresentam duas alternativas, aceitar esses desejos, tentando o auto-convencimento de que afinal eles não são humilhantes, ou tentar mudá-los. Pessoalmente prefiro optar decididamente pela segunda alternativa por mais difícil que ela possa ser. Em primeiro lugar, como estratégia, defendo o acordar das consciências para este problema, procurando explicar porque é que o desejo sexual feminino assume a forma padrão que assume. Em seguida, cada mulher que conseguiu sair da ‘caverna’, isto é, da ignorância, para utilizarmos a metáfora platónica, e compreendeu os seus desejos, pode, verdadeiramente, optar por mantê-los ou por modificá-los. Neste segundo caso, com o auxílio da imaginação pode tentar construir uma sexualidade autónoma, não colonizada, da qual não se envergonhe.
Citações de Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination.
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